FOLHAS AO VENTO
primeira viagem
Menino
de beira-mar, poucas imagens restaram por trás dos meus olhos tão
belas, tão simbolicamente evocativas, como a figura de um veleiro branco
que alça velas, levanta a âncora e sai mar afora, em busca de um lugar
qualquer... longe, muito longe.
Viajei
pouco em barcos assim, mas dediquei a eles alguns dos poemas de que
mais gosto. Velas e, sobretudo, o vento, o grande viajeiro do planeta
Terra estão presentes em escritos meus de diferentes e distantes anos.
Assim como dediquei outros poemas aos trens, barcos de terra adentro,
quando comecei a dar as costas aos mares de minha infância e juventude e
aprendi a viajar em trens, mas não só neles, entre terras que vão de
mar-afora a sertões-adentro.
Foi
assim que me vi percorrendo o caminho oposto ao de dois mineiros de
“terras adentro”, cujos escritos de prosa e poesia me acompanham da
juventude marinha até os dias de agora: João Guimarães Rosa e Carlos
Drummond de Andrade. Os dois, já adultos e escritores, vieram dos fundos
de Minas para as beiras do mar de Copacabana, onde nasci.
Quando
dei conta de mim, casei com mulher goiana e tomei o rumo oposto. Não
faz muito tempo cruzei com uma imagem de Drummond moldada em bronze,
sentado em um dos bancos da calçada de beira-praia, olhando o mundo e o
mar.
Mas
aqui não são velas de barco ou de sonho. São folhas. Folhas escritas
com alguma poesia, numeradas como em viagens: da primeira até... qual?
Folhas escritas e soltas ao vento.
Passei
quase toda a minha vida escrevendo. Desde menino e mau aluno nos
colégios do Rio de Janeiro, boa parte de minhas então raras horas de
solidão era dedicada a escrever. Escrevi muito e sempre com um estranho
costume: raramente leio depois o que eu mesmo escrevi. Menos a poesia.
Claro, leio bem mais poemas de outras e outros poetas do que os meus. E
este é um hábito que recomendo fortemente. Agora,
aos setenta anos, escrevo ainda. Ainda vivo entre projetos e relatórios
de pesquisa em antropologia. Agora mesmo um novo projeto de estudos, ao
longo do rio São Francisco. Ainda escrevo – e desde um distante 1963 – a
respeito de cultura popular e de educação. Tarde, mas ainda a tempo,
comecei também a escrever sobre a vida, a natureza, os cuidados com o
meio ambiente, e sobre como poderíamos nos unir para vivermos uma vida
mais simples e solidária.
Reconheço
que circulam entre nós, em livros, artigos e mensagens eletrônicas,
muitos escritos excelentes a respeito de “tudo isto”. E esta é uma razão
pela qual resolvi participar destas “teias e redes” através da poesia.
Sei
que entre tantas mensagens e escritos, é sempre a ela que devemos
voltar para reencontrar os momentos mais profundos do que o espírito
humano cria com o coração, a mente e as palavras.
Os
poemas das séries de FOLHAS AO VENTO não são todos e nem são sempre os
meus. Afinal, sou apenas uma folha entre tantas e tantas. E sei que
muitas (muitas mesmo!) voaram bem mais alto e longe do que eu. Aqui
estarão poemas traduzidos livremente; poemas que escrevi em diálogo com
poetas que amo... e poemas meus.
Aqui começa a série das FOLHAS AO VENTO. Como as que virão depois, ela atira poemas ao mar, ao vento e à vida, a espera de que alguém – você, por exemplo - os encontre em alguma estrada ou esquina, mesmo que dos mapas da internet.
Encontre,
leia ou simplesmente olhe, e faça a si mesmo(a) ou ao mundo as
perguntas que os poetas também fazem, mesmo sabendo que para quase
todas, as respostas não existem. Ou, quando existem são, como a vida,
respostas difíceis de se perguntar.
Esta é uma primeira edição – espero que não a “única” – de FOLHAS AO VENTO. Reuni
aqui poemas meus e de outros poetas. Quase sempre poetas que valem como
mestres e que leio e releio sempre que posso voltar a eles. Há,
portanto, poemas de outros poetas traduzidos livremente por mim.
As
pequenas notas ao final indicam um velho costume. Ao ler poemas em seus
livros, gosto de reescrevê-lo ora em algum espaço em branco da própria
folha, ora em alguma folha em branco do livro. Não é raro que um poema
que me maravilhe inspire em mim um outro. Nunca igual ao que acabei de
ler. Não raro, sequer semelhante. Mas um poema de momento que não
existiria se não fosse a leitura de um outro.
Por isso em alguns casos me lembrei de indicar ao final o lugar onde o original foi escrito à mão - ainda há quem “escreva a mão” - a
data e. quando lembrado, o lugar onde eu estava quando li e escrevi.
Algumas frases com interrogantes sugerem que quando revi o que escrevi,
já não lembrava mais todos os dados.
Eis porque a esta primeira coletânea dei o nome de: O VIZINHO POETA.
Esta primeira edição de FOLHAS AO VENTO foi iniciada em
uma casa dentro da Mata Atlântica, diante do mar da praia da
“Comunidade de Picinguaba”, no Litoral Norte de São Paulo. Eram os
últimos quatro dias do ano de dois mil e nove. Ao longe alguns barcos de
pescadores – vários a motor, raros a vela – saem da beira praia em
direção ao mar. Dois veleiros brancos balançam de leve num mar de baia
sem ondas.
Esta
“primeira edição” foi relida e revista em Campinas, poucos dias depois
de eu descobrir (sem sustos) que já tenho setenta anos.
Boa leitura! Boa viagem!
Carlos Rodrigues Brandão
A pobreza
Ai, não queres,
te assusta
a pobreza,
não desejas
ir com sapatos rotos ao mercado
e voltar de lá com o velho vestido.
Amor, não amamos
como querem os ricos,
a miséria. Somos nós
quem haverá de extirpá-la como um dente ruim
que desde sempre mordeu o coração do homem.
Mas eu não quero
Que temas a pobreza.
Se por minha culpa ela chega à tua morada,
se a pobreza expulsa
os teus sapatos dourados,
sue ela não expulse o teu sorriso que é o pão de minha vida.
Se não podes pagar o aluguel
sai em busca do trabalho com um passo orgulhoso,
e pensa, amor, que eu te estou vendo
e juntos somos a maior riqueza
que jamais se viu reunida sobre a Terra.
Pablo Neruda
Los versos Del Capitan
Editorial Oveja Negra Bogotá Colombia
Pg. 66
Um deus sonhado
Desde um mundo que ignoro
tu procedes ardente de beleza
e eu me clareio e há a luz porque eu sei
que existe tamanha formosura. E tu vens
de frente. Vens, e chegas aqui como a folha
cai da árvore e voa até mim e embala o vento.
O vento como o Sol, como um de seus raios
Que és. Que ele é e Sol me envia.
E então eu digo como um som, uma palavra:
que ele sou eu, e sou
e digo a ti que venhas, Deus
e por um momento
e sonhas, como eu, minha palavra.
Angel Crespo
De que livro? De onde?
Foz, na Galícia, janeiro de 1997
(debaixo de uma tempestade boreal)
o mundo para além das palavras
Escuta, há dentro deste mundo um outro mundo
Impermeável às nossas palavras.
Nele a vida não teme a vinda da morte
E nem a primavera dá lugar ao outono.
Velhas histórias e antigas lendas surgem de telhados e paredes
E mesmo as pedras e as árvores exalam a poesia.
Aqui a coruja da noite transforma-se no colibri
E o lobo gosta de ser um belo pastor.
Para que a paisagem mude à tua volta
Basta mudares o que sentes
E se queres vagar por entre estes cenários
Basta que digas a ti mesma o teu desejo.
Fixa o olhar no deserto dos espinhos
E vê como logo ele é um jardim florido.
Vês aquele bloco duro de pedra no chão?
Olha bem: ele se move e vira um diamante.
Lave bem as tuas mãos e o teu rosto
Nas águas puras deste lugar
Porque aqui os que te amam te alimentam.
E aqui é o lugar onde todo o ser gera um anjo
E quando um deles retorna com Deus aos céus
Os que se foram retornam à vida.
Já vistes por certo as árvores crescendo sobre a terra,
Mas quem já viu um Paraíso quando ele nasce?
Vistes também as águas de rios e de mares
Mas quem já viu nascerem de uma só gota de água
Tantos e tantos seres tão cheios de vida?
Quem conseguiria imaginar esta Morada,
Este Céu e este Jardim do Paraíso?
Tu, amiga, que agora lês este poema,
Lê tua alma e traduz o que agora sabes.
E vai, e conta a todos o que aprendestes
Sobre este lugar abençoado.
Rumi
Sede de Deus – orações do judaísmo, cristianismo e islã
Editora VOZES – Petrópolis, página 180.
Inventário
Secas, sem ares e vivas da vida
o que é igual ao que não é azula
e no escuro do escuro do que existe
cresce no altar do tempo a ara do tempo
e sobre o solo da alma a água apruma
o seu se ir de rio em rio caminho afora
e é tarde e chove e cai um raio e um outro
acende o céu e o céu aclara a noite clara
e é cada estrela como a espera de outra
e o sol da luz lembra ao olhar do homem
que uma vela só clareia o mundo.
Walace Stevens
(onde? quando?)
A Lua
Pensava que o poeta é aquele homem
que como o áureo Adão do Paraíso
impõe a cada coisa o seu preciso,
verdadeiro e não sabido nome.
Sei que a Lua ou a palavra Lua
é uma letra que foi criada para
a escritura misteriosa dessa rara
coisa que nós somos: numerosa e uma*
* coisa que somos: minha alma e a sua
(para que fique mais de acordo, em Português)
Jorge Luis Borges
Pg. 133 (de onde?)
E como aquela noite nunca houve
quando a luz da lua como vinho se bebia
e no fim da tarde ela veio leve e fria
quando em tudo o arco-íris das nuvens
desenhava as sete cores de que o sol
fiava a roupa do atardecer e se cobria
de vermelho e de roxo, de azul e cinza
e de tristeza e solidão, paz e alegria.
Poema meu
(com Borges?)
Neruda
Tenho uma doença
Que me rói
E não verei meu planeta
Convertido em rosa.
Trago em mim uma morte antecipada
E de meu país ao Sul
Não verei a hora da festa,
A alegria na rua.
Tenho uma tristeza que me amarga
E se me perguntarem porque
Direi que não,
E que o silêncio da lua
Fale por mim e julgue.
Na página 17 de defeitos escolhidos e 2000
Pablo Neruda
Pouso
Inadvertidamente
como um colibri
que enfim pousa.
Meu poema escrito em alguma página de inéditos e dispersos,
de Ana Cristina César
Arte poética
Olhar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é um outro rio.
Saber que perdemos como o rio
o que os rostos pensam como água.
Sentir que a vigília é o outro sonho
que sonha não sonhar, e que a morte
que tanto teme a nossa carne é essa morte
de cada noite, assim chamada: sono.
Ver em cada dia ou ano um símbolo
dos dias do homem e de seus anos
e converter o ultraje de seus tempos
em uma música, um rumor e um símbolo.
Ver na morte um sono e no ocaso
um ouro triste, e assim é a poesia
que é pobre e imortal. E a poesia
volta como a aurora volta e volta o ocaso.
Ás vezes, nas tardes uma casa
nos olha desde o fundo de um espelho.
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria casa.
Contam que Ulisses, cansado de prodígios
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
de verde eternidade, não de prodígios.
Verde e humilde, a arte é essa Ítaca
e é também um rio interminável
que passa e fica e é cristal de um igual
Heráclito inconstante, que é o mesmo e é outro
assim como um outro rio interminável.
Jorge Luis Borges
(claro) onde?
(de Borges)
Será (me digo então) que de algum modo
secreto e suficiente a alma sabe
que é imortal e que seu vasto e grave
círculo abarca tudo e tudo pode
e para além deste afã e deste verso
me aguarda inesgotável o universo.
Composición escrita em um ejemplar de
La Gesta de Beowulf – 225